É chegado o momento de municípios, estados e União iniciarem o processo
Entre as diferenças da iniciativa privada está a geração de receita sem contraprestação e bens de uso público
Roberta Mello
Em 2008, o Brasil iniciou a adaptação às Normas Internacionais de Contabilidade (em inglês, International Financial Reporting Standards – IFRS). Depois da normatização e adequação das empresas privadas, é chegado o momento de municípios, estados e União iniciarem o processo de entrar em consonância com os padrões internacionais. Isso inclui todos os órgãos públicos, dos poderes executivo, legislativo e judiciário.
Em janeiro de 2017 passou a vigorar o primeiro conjunto de normas internacionais voltadas ao setor público, além da Estrutura Conceitual da Norma Brasileira de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (NBC TSP), publicada em outubro de 2016. Ao todo, são 32 normas, que devem ser convergidas a partir da liberação de módulos até 2021.
A legislação que regulamenta a contabilidade pública brasileira data de 1964 e não reflete os avanços pelos quais passou a contabilidade e a sociedade no período. Desde 2008, o Conselho Federal de Contabilidade (CFC), órgão responsável pela edição de normas contábeis no País, publicou onze NBC TSPs inspiradas nas internacionais, mas não convergidas.
O governo federal iniciou, em 2013, o projeto ambicioso de adequar as demonstrações contábeis aos padrões internacionais a partir da implantação do Plano de Contas Aplicado ao Setor Público (Pcasp) em estados e municípios. O objetivo foi instituir um instrumento de orientação comum aos gestores nos três níveis de governo, mediante consolidação, em um só documento – o Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (Mcasp) – de conceitos, regras e procedimentos de reconhecimento e apropriação das receitas e despesas orçamentárias sob os enfoques orçamentário e patrimonial.
Em 2015, foi reformulado o Grupo Assessor das Normas Brasileiras de Contabilidade Aplicadas ao Setor Público (GA – Área Pública), com a missão de dar andamento ao processo de conversão. Atualmente, existem 32, e o CFC pretende, além da Estrutura Conceitual, publicar mais cinco ainda este ano. “Convergimos as normas aplicadas ao setor privado e as de auditoria. Agora vamos completar o processo com as normas para o setor público”, disse o vice- presidente técnico do CFC, Zulmir Breda, que coordena o grupo. O CFC mantém, há anos, um grupo estudando a contabilidade do setor público, que foi responsável pela elaboração das onze NBC TSPs e, no ano passado, foram incluídos Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e Tribunais de Contas estaduais (TCEs), Tribunal de Contas das União (TCU), acadêmicos e representantes dos estados, traçando um cronograma para que, até 2021, todas as normas estejam convergidas. A Estrutura Conceitual revoga a Resolução CFC nº 750, que aprovou os princípios que a contabilidade pública deve seguir. “A Estrutura é muito extensa, bastante detalhada e traz alinhamento de conduta para as próximas normas que serão convergidas. Ela trata de escopo e fala diretamente para quem se destina, na aplicabilidade”, afirma Breda.
A grande mudança com a consolidação das normas internacionais aplicadas ao setor público (as Ipsas ou International Public Sector Accounting Standards), em um primeiro momento, deve ser a inclusão dos aspectos patrimoniais à contabilidade. Até então, exemplifica Breda, apenas questões orçamentárias eram contabilizadas, ou seja, investimentos em escolas, hospitais, infraestrutura não eram contabilizados. A normatização cria, ainda, parâmetros únicos à contabilização dos patrimônios em todo território nacional. “A contabilidade pública deve obter maior representatividade, adquirindo mais fidedignidade das informações que traz. Teremos demonstrações contábeis que irão trazer informação muito mais completa e precisa sobre a realidade de cada ente federativo”, projeta o vice-presidente técnico do CFC.
Ainda que com conteúdo basicamente igual às regras aplicadas a empresas privadas, as novas normas para demonstrações contábeis de entes públicos têm suas particularidades. As três grandes diferenças dizem respeito aos bens de uso público, à geração de receita sem contraprestação e à existência de parcerias público-privadas: todas completamente impossíveis de serem aplicadas à realidade de organizações com fins lucrativos. O contador, especialista em contabilidade pública, coordenador da comissão de contabilidade aplicada ao setor público do CRCRS, Diogo Duarte, diz que é importante deixar claro que a contabilidade pública não se parece com a aplicada às empresas privadas, mas ao padrão internacional. “O que aconteceu foi que a convergência das normas aconteceu antes para essas organizações”, salienta. A grande parte dos países desenvolvidos e em desenvolvimento já convergiram ou estão em fase de conversão às Ipsas. As principais exceções entre esse grupo são os países europeus que criaram as EPSAS (normas europeias), usando como base o dispositivo internacional consolidado pelo Ifac.
Estão submetidos à norma os governos nacionais, estaduais, distritais e municipais e seus respectivos poderes, incluindo os Tribunais de Contas, Defensorias e Ministério Público. Ainda, incluem-se órgãos, secretarias, departamentos, agências, autarquias, fundações instituídas e mantidas pelo poder público, fundos, consórcios públicos e outras repartições públicas congêneres da administração direta e indireta, abrangendo aí as empresas estatais dependentes.
Mcasp é o principal documento a ser usado para adaptação
A contabilidade dos órgãos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, no exercício de 2017, deverá se basear na 7ª edição do Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (Mcasp). A publicação, que visa auxiliar o processo de consolidação das contas públicas e a elaboração do Balanço do Setor Público Nacional (BSPN), foi lançada pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN), neste início de ano, juntamente com as orientações para o envio de dados para o Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi).
O manual dá a orientação técnica de forma detalhada, explicando como aplicar as novas regras na prática. O Mcasp está à disposição de todos os estados e municípios. Além de estudar minuciosamente o manual, cursos de formação podem ajudar na adequação às novidades. “É claro que, entre os funcionários públicos e gestores, a adoção das novas disposições do CFC é mais do que uma opção. É uma reação à exigência da STN”, explica o contador Diogo Duarte.
Entre os estados brasileiros, o Rio Grande do Sul é um dos mais avançados, principalmente por contar com um Conselho Regional de Contabilidade (CRCRS) atuante e com duas grandes consultorias para as entidades municipais: o DPM (Delegações de Prefeituras Municipais Assessoria e Treinamento) e o Igam (Instituto Gamma de Assessoria a Órgãos Públicos). O CRC realizou encontros e palestras sobre o assunto em cidades do Interior gaúcho e deve continuar fazendo nos próximos cinco anos. Além disso, diz Duarte, os municípios gaúchos têm a vantagem de contarem, em sua maioria, com corpo técnico profissional e concursado. “É muito comum nas regiões Norte e Nordeste que os municípios terceirizem a função do contador, o que dificulta a adaptação e um trabalho continuado”, revela.
Parâmetros foram criados pelo CFC
As mudanças nas normas internacionais de contabilidade caminham ao lado do Projeto de Lei (PLP) nº 295/2016, que altera a Lei nº 4.320/1964, conhecida como Lei Geral dos Orçamentos (LGO). O projeto de lei em discussão no Congresso Nacional pretende substituir a legislação vigente há mais de 50 anos e, em sua versão atual, afirma textualmente que o padrão a ser utilizado para a elaboração da contabilidade pública são as Normas Brasileiras de Contabilidade Aplicadas ao Setor Público.
Conforme os especialistas, o texto não reflete os anseios da sociedade em questões como transparência, eficiência e qualidade do gasto público. A Lei nº 4.320/1964 rege a contabilidade brasileira, cuja interpretação, sob o ponto de vista do orçamento, prevê que os registros das receitas orçamentárias sejam feitos pelo regime de caixa, ou seja, quando da entrada do recurso nos cofres dos entes. Desde o início da internacionalização da contabilidade pública, em 2008, os aspectos relacionados à contabilidade patrimonial presentes na Lei nº 4.320/1964 foram revistos e, além disso, os normativos reforçaram a aplicação do regime de competência. O projeto propõe mudanças no processo orçamentário brasileiro. Além de alterar a Lei nº 4.320/1964, inclui alterações nas Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/00). O texto, que afeta normas adotadas por União, estados, Distrito Federal e municípios, é a principal tentativa em discussão no Congresso para estruturar os orçamentos públicos, que hoje contém normas dispersas em diversos documentos legais.
A Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece, em regime nacional, parâmetros a serem seguidos relativos ao gasto público de cada ente federativo (estados e municípios) brasileiro. As restrições orçamentárias visam a preservar a situação fiscal, garantir a saúde financeira de estados e municípios, a aplicação de recursos nas esferas adequadas e uma boa herança administrativa para os futuros gestores. Aprovado no Senado Federal, o projeto agora entra em análise na Câmara dos Deputados. Na Câmara, um dos principais desafios será adequar o PLP 295 ao Novo Regime Fiscal, que limita os gastos públicos por 20 anos a partir de 2017. Para o vice-presidente técnico do CFC, Zulmir Breda, a alteração ainda deve levar um tempo, pois o governo federal já avisou que irá fazer substitutivos à matéria em tramitação.
Fonte: Fenacon / Jornal do Comércio – RS – Por: Roberta Mello